domingo, 31 de dezembro de 2006
O alfarrabista
No sebo, livro vendido renasce em mãos alheias.
Páginas manuseadas – ensebadas –
recumprem a sua função.
Do seu canto empoeirado,
os óculos empoleirados na ponta do nariz
(ave de rapina prestes a mergulhar),
o alfarrabista examina cada um
calcula quantas vidas já viveu
e quantas outras ainda lhe restam.
Assim faz com cada livro que lhe chega
e cada alma que o entrega.
Desapego
Na véspera da tua boda
um Rafael nos apresenta—
muito prazer, como vai, etc. e tal.
Com muita naturalidade
sem combinar
nós fingimos
que não nos conhecemos.
(em algum lugar do mundo
um elevador despenca)
sexta-feira, 29 de dezembro de 2006
Cílios (resposta a Cristina Nunes)
De dia os cílios vivem separados
cada um na sua
meio de mal, semi-brigados
juntando-se apenas vez ou outra
por milésimo de segundo
dando trégua ao enfado
para verificar que o colega
ainda mora ali ao lado.
Quanto a noite cai
vence a camaradagem
de tantos anos de casamento.
Beijam-se as pálpebras
entrelaçam-se os cílios:
consuma-se a re-con-ciliação.
quinta-feira, 28 de dezembro de 2006
Aprendizagem pelo silêncio
Uma laringite aguda
roubou-me a voz
devolveu-me a escuta.
A tua fala, antes mansa,
transparece bruta.
Mudez de três dias
por mais que curta
aguça a audição.
De minha condição de muda
ouvi quanto se perde ao falar.
Hoje, recuperada,
sei me calar.
quarta-feira, 27 de dezembro de 2006
Aproximação aérea do Rio de Janeiro
Uma visão pequena e redonda:
a mata fechada deitada na serra.
Lânguidas nuvens se debruçam sobre rochedos,
se enrolam e desenrolam
entre os joelhos das montanhas.
Repentista, a cidade se revela com alarde.
Primeiro, aninhada em vales.
Mais adiante, devorando seus próprios morros
como se topografia fosse mera piada.
Apegada à superfície do planeta feito uma crosta
que alcança fundo: de aqui de cima
juro que as raízes desta cidade
tocam o caroço do mundo.
A cidade abraça a baía e
esparrama-se norte e sul.
Até que, quase de estalo,
interrompe-se na orla—
fita branca e limpa
que estanca a hemorragia urbana
como quem comanda: “Pára!”
e abre alas pro azul.
terça-feira, 26 de dezembro de 2006
Surubim
Na desova da piracema
quando pescador honesto
recolhe suas tarrafas,
o surubim, peixe de couro,
rastreia silencioso a barriga do rio.
Mas na feira de domingo
o pescador, homem de couro,
remendando a rede repete sempre:
surubim é peixe ignorante.
No São Francisco desceu a vida toda peixe morto.
Surubim não sabe saltar.
Sai de dentro d’água e, com a velocidade que vem,
bate com a cabeça na pedra
e morre na hora.
É essa a burrice do surubim,
apesar da dura carapaça que o reveste,
e das profundezas escuras de leito de rio,
das esquisitices do lodo negro em que
só surubim se atreve.
Poema para o pé
(poema infantil)
Declamo o pé,
meu nobre pé,
conhecido apenas
por seu chulé,
mas que tem
muitas virtudes:
sobre tudo me carrega
pra lá e pra cá
sem nem muito
se queixar.
Quem é o pé?
Ora bolas, o pé
é nada menos que
a mão da perna.
Ou será que a mão
é que é o pé do braço?
Enfim, é o pé
que me acode
na hora de andar,
de pedalar,
de correr,
de pular,
de dançar.
E é em homenagem ao
humilde pé
que temos:
o arrasta-pé,
o pé-de-moleque,
o "ao pé da letra."
Proponho o
Dia Nacional do Pé.
E a mão?
Só se for pra
plantar bananeira.
E plantar bananeira com os pés?
Isso é chamado: “Ficar de pé.”
Declamo o pé,
meu nobre pé,
conhecido apenas
por seu chulé,
mas que tem
muitas virtudes:
sobre tudo me carrega
pra lá e pra cá
sem nem muito
se queixar.
Quem é o pé?
Ora bolas, o pé
é nada menos que
a mão da perna.
Ou será que a mão
é que é o pé do braço?
Enfim, é o pé
que me acode
na hora de andar,
de pedalar,
de correr,
de pular,
de dançar.
E é em homenagem ao
humilde pé
que temos:
o arrasta-pé,
o pé-de-moleque,
o "ao pé da letra."
Proponho o
Dia Nacional do Pé.
E a mão?
Só se for pra
plantar bananeira.
E plantar bananeira com os pés?
Isso é chamado: “Ficar de pé.”
segunda-feira, 25 de dezembro de 2006
Na casa dos trinta
Na casa dos vinte,
regia ainda o está-por-vir.
Fui por excelência
porta-bandeira do deixe-estar.
Dançava furiosamente
por ruas empedradas
com minhas saias rodadas,
uma pedra ardendo na testa.
Na casa dos trinta,
indecisão e inconseqüência
morrem afogadas—
uma na praia e a outra em alto-mar.
Não me resta outra opção.
Dobro e guardo a bandeira, as saias.
Tiro do bolso o mapa minúsculo
que me encaixaram
debaixo da língua quando nasci.
Ergo a vista, lanço a trilha.
Engreno a sina.
domingo, 24 de dezembro de 2006
A centopéia (poema infantil)
De manhã a centopéia se levanta
veste seus cem pares de meia
calça seus cem pares de tênis
e amarra seus cem pares de cadarço
com duzentos laços bem apertados
(cem de cada lado).
Quando eu estava crescendo
e meus pés iam espichando
minha mãe costumava dizer:
-- Meu Deus, já precisa de sapatos novos!
Imagine então o que dirá
a coitada da mãe da centopéia.
sexta-feira, 22 de dezembro de 2006
Canção pra fazer o tempo passar
(letras)
Quero que você me queira
como uma centopéia
com cem braços que me abraçam
pela noite noite inteira
Peço que você me beije
como um leve beija-flor
que as asas tanto bate
que parece levitar
Gosto de você
gosto de você assim
como a neve como orvalho
que se deita no jardim
Gosto de você
gosto de você assim
com pandeiro com cavaco
berimbau e bandolim.
quinta-feira, 21 de dezembro de 2006
Contar
Ainda há muito o que contar.
A minha barriga é um grande arquivo de relatos.
Você acende a luz,
abre meus fichários,
folheia meus panfletos e folhetins.
No escuro, cai do teu bolso
uma bola de gude esverdeada
que rola pelo corredor
e se perde num canto escuro.
Sem que você perceba,
as palavras sobem as escadas
saltam da minha garganta e
se sentam na minha língua.
Aguardam ali a contagem regressiva.
quarta-feira, 20 de dezembro de 2006
Sou da pedra
Sou da pedra.
Já não sou mais
da espuma do mar.
Nem da flor nem da renda
nem do galopante vento
mais hoje sou eu.
Sou do minério,
duro e forte,
e mesmo na melancolia
a fria pedra me fez.
Não me tragam mais
teias d'aranha,
flores de ipê.
Nem colo mais eu quero.
Hoje, meu caro,
sou do asfalto,
nasço em jazigo e
morro na areia,
vim da pedra e
da dura pedra sou.
Glossário de verbos úteis
I. Perder
Saber
despertencer.
Nos aferramos a este mundo
como moluscos ao casco da barca.
Aprender o perder--
quando e como soltar--
deixar estar.
II. Voltar
Voltar pra casa
é adentrar nos próprios ventrículos.
Descalçar e deixar
o par de sapatos na entrada.
Sentir o cheiro da erva-doce.
Rever a si como foi outrora.
Aceitar a fuga.
Entender que pra voltar
há que primeiro ir embora.
terça-feira, 19 de dezembro de 2006
A manta
Da agulha que fura
e do fio que esgana
faz-se a manta,
coisa que abraça.
É uma verdade antiga:
O crochê é domesticação
de velhas mágoas.
Nas argolas entrelaçadas
amansa-se muita coisa.
Minha avó fazia mantas
de cores escandalosas.
Vermelhos fumegantes,
laranjas cósmicos,
amarelos fosforescentes.
Juntava os quadrados
com uma precaução:
arrematava cada corrente
com três nós firmes.
Basta uma ponta solta
para a manta se desfazer.
Isso liberta antigas mágoas,
deixa o passado correr solto.
segunda-feira, 18 de dezembro de 2006
Ode ao bode (poema infantil)
Esta ode
dedico ao bode.
Ora, o bode
nada mais é
que um cabrito
de polainas
e de bigode.
Mas bode sabido
dança samba,
se sacode.
Bode malandro
toca cuica
no pagode.
Quando cai balão
bode esperto
logo acode.
Como poderíamos
deixar de louvar
com uma ode
essa maravilha
que é o bode?
domingo, 17 de dezembro de 2006
Casa de fazenda
Eis a minha extensão—
um terreiro limpo e batido.
Aqui se secam
se malham
se trilham
se limpam
se rezam
cereais, legumes, preces, café.
Eis o meu balaio—
repare na minha palha, em feitio de alguidar.
Sou primo do baleio, que varre o grão da eira.
Aqui se carregam
tijolos
filhos
temores
cobranças
lembranças
rumores.
Eis o meu balcão—
Aqui se abrem se laçam se degolam se destripam
galinhas d’angola
codornas
pacas
febres
desfechos
corações.
Muita coisa
jorra da rubra terra.
Muita coisa
carrega uma fazenda.
Poema tímido de amor
Acordados, os teus olhos
irrequietos mudam de cor.
Já ancorado o sono, resta apenas
o negro-azul imutável dos teus cílios.
Preto-piche, feito a asa da graúna.
Ai que vontade de te acordar
e te falar da graúna.
Perder
Saber
despertencer.
Nos aferramos a este mundo
como moluscos ao casco da barca.
Aprender o perder--
quando e como soltar--
deixar estar.
sábado, 16 de dezembro de 2006
Vistoria
Apalpas brechas. Eu
remendo armaduras.
Prosseguimos com
nossos delicados
jogos de guerra.
A dor, já esgotada,
serve de alimento—
come, amor.
sexta-feira, 15 de dezembro de 2006
A casa dos trinta (poema para Daniel)
Eu ainda te conheço:
mas você é hoje
uma casa de muitos cômodos.
Mal implode uma sala e você,
as mãos enfiadas na argamassa,
já ergue paredes.
Achávamos que éramos
meninos de ouro
mas hoje em dia nos refazemos
de concreto armado--
alicerce, pilares e fachada.
A tua filha terá palácios.
Ela se acomodará nos teus ventrículos.
Sentada no peitoril
de grandes janelas abertas
ela sentirá a plena força
da tua mão de obra.
quinta-feira, 14 de dezembro de 2006
Receita de pretzel
Cara amiga, o pretzel é uma rosca de braços cruzados. O pretzel bufa, impaciente. Lembra um pouco o palmiê que a gente compra nessas padarias mais refinadas. Só que o pretzel é salgado, e bem mais rude, e guarda mais segredos. Cada rosca carrega seu próprio enredo. Pra fazê-lo à risca você vai precisar de um forno zangado. Comece com massa de pão. Será preciso enganá-la para que vire pretzel. Já feita a massa, você amassa até que se desprenda das mãos. Ela resistirá, eu te asseguro. Massa de pretzel é massa carente, impertinente. Deixe a massa descansar. Reserve. Prepare um banho alcalino misturando bem bicarbonato e a água morna. Reserve. Chore forte. Reserve. Após banhar a massa no banho alcalino, asse o pretzel até que doure. Se queimar por baixo, menos mal. Tem coisas que queimam que fazem bem. Retire do forno e ainda quente pincele com manteiga derretida. Salpique com o sal grosso. O melhor sal grosso é o que brota no fundo da panela onde você ferve as lágrimas. Sirva sempre quente, quase pelando, para que o espanto do tato dê lugar ao reconforto.
terça-feira, 12 de dezembro de 2006
Anéis
Resplandescentes,
anéis ricos
em mãos carentes
puxam brilhos.
Buscam olhares
os colares caros
de rubis raros,
eternamente.
Arrependidas,
mãos rendidas
contam seus casos,
inconfidentes.
segunda-feira, 11 de dezembro de 2006
23:52 Prospect Heights
Na vitrola,
o choro ri.
Entre ponto e contraponto
o colega e eu
recitamos lições em comum:
que não se vive de pontes,
que não se mede horizontes e
que estando fora e longe
desliga-se fácil
o canal de casa.
E o que toda
a boa pedagogia do bandolim
esqueceu de mencionar:
que o amor não basta,
e que talvez
nem mereça bastar.
domingo, 10 de dezembro de 2006
Auto-retrato
Um ponto.
Estendendo-se em linha--
Fechando-se num círcul o
Rolando numa bola
quicando,
quicando,
quicando pelo vasto mundo aberto.
sábado, 9 de dezembro de 2006
Tríptico
Sansão cabisbaixo,
acorrentado às colunas,
fitando os próprios pés,
esperando.
Uma flor de suor
brotando na testa.
Eu sou Sansão.
Plínio, debruçado
na balaustrada.
No horizonte, um negro veludo
encobre Pompéia.
A montanha vomita fogo.
Ele agüarda, o olhar clínico.
Eu sou Plínio.
Maria Quitéria, mulher-soldado,
empunhando a baioneta
na foz do Paraguaçu:
Culote, bota e perneira.
O olho na mira,
a mira no alvo,
esperando.
Eu sou Maria.
sexta-feira, 8 de dezembro de 2006
Desvios
De dia, já não te contemplo mais.
Navego ruas que foram nossas
como se agora fossem só minhas,
as calçadas lavadas de lembranças,
a neutralidade das coisas
a duras penas recomposta.
Mas, noturno e oportunista,
infiltras meus sonhos
com vestígios de ternura--
sonhos que, ao me despertar,
se fazem pesadelos
pela força de sua ficção.
quinta-feira, 7 de dezembro de 2006
Subcutâneo
Matutinalmente
engulo com
a boca escancarada
cidadãs e cidadãos.
Penetro sem esforço
as entranhas dessa terra.
Imutáveis trilhos me guiam:
sinuosa sina de aço.
Atravesso rios e rochedos,
carrego paixões e desafetos
no meu ventre serpentino.
Existo simples e pleno assim,
diário e subterrâneo,
respirando por grades
e poros estratégicos.
Sem dar grande importância
à música perplexa
da cidade aberta.
segunda-feira, 4 de dezembro de 2006
Novembro cai
Um vão pesado
apertando o tórax:
cúmulo-nimbus.
Negras sombras
sangram no asfalto
em pleno meio-dia.
A tal torneirinha
se abre, pigarreia
e respinga.
Viscosidades
escorrem pelo
cérebro.
Engaiolados,
meus vaga-lumes
pedem demissão.
Eu te ligo:
Vem pra minha casa
desarmar essa
bomba artesanal.
domingo, 3 de dezembro de 2006
Telegrama a Alessandra Espínola
Querida amiga desconhecida
plantada na sua cidade de ilhas,
te escrevo desde
esta cidade de ilhas, já meio-minha.
Pense bem: o Capibaribe e o Hudson
deságuam no mesmo Atlântico.
Troquemos um pretzel
por um cajá.
Lembre de minha cidade
na sinagoga da Rua do Bom Jesús.
Saiba que ali
(de entre todos os lugares deste mundo)
larguei um pedaço do coração.
Te conto o conto um dia.
Por enquanto, o que posso oferecer?
Pontes-pêncil.
Pentes de arranha-céus.
Prosa-poemas.
Nossos versos atravessam cibercampos e
se entrefalam. Na ausência
de rostos e de vozes
essas coisas
gostosamente bastam.
sexta-feira, 1 de dezembro de 2006
Simetria
Ela optou por julho.
Ele esperou até agosto.
Ela se foi
catando atenções, até que
escapuliu, serelepe.
No hospital eu e a Dinda
passávamos vaselina nos seus lábios,
dizíamos que estava bonitinha.
Ela sorria,
e morria mais um pouco.
Ele partiu como viveu:
sem querer dar trabalho.
Cheguei a vê-la na capela,
mortinha da silva.
Ajeitei a sua gola e
olhei pela janela quando fecharam
o lacre.
Passei aquela noite
ao lado dele.
Por isso sei:
foi a assimetria
que ele não agüentou.
O criado-mudo sem par.
Quando eu voltar em dezembro
vou me deitar no meio da cama.
Pra estudar
esse novo equilíbrio.
quinta-feira, 30 de novembro de 2006
Avô
Foi-se embora
pra Pasárgada
o meu doce
Tico-tico.
Foi seguindo
na tal balsa
o seu doce
Sabiá.
Ai de mim
Que aqui fico,
Tico-tico
No fubá.
pra Pasárgada
o meu doce
Tico-tico.
Foi seguindo
na tal balsa
o seu doce
Sabiá.
Ai de mim
Que aqui fico,
Tico-tico
No fubá.
quarta-feira, 29 de novembro de 2006
Os homens no metrô
Outro dia comecei a reparar
Nos homens que me olham no metrô.
E cheguei à seguinte conclusão.
Esses homens não sabem
Que sei de cor o minuano
Que carrego um caramelo de mágoa
Debaixo da língua
E que planto flores com os olhos.
Nem desconfiam que
Por baixo do mantô
Eu giro feito um catavento.
Nos homens que me olham no metrô.
E cheguei à seguinte conclusão.
Esses homens não sabem
Que sei de cor o minuano
Que carrego um caramelo de mágoa
Debaixo da língua
E que planto flores com os olhos.
Nem desconfiam que
Por baixo do mantô
Eu giro feito um catavento.
Repeteco
Eu me repito.
E repito:
Eu me repito.
Sem a repetência
As coisas mal se grudam
Umas nas outras.
O ovo na farinha.
O cheiro na memória.
O sentido na palavra.
Então,
Eu me repito.
E repito:
Eu me repito.
Sem a repetência
As coisas mal se grudam
Umas nas outras.
O ovo na farinha.
O cheiro na memória.
O sentido na palavra.
Então,
Eu me repito.
terça-feira, 28 de novembro de 2006
segunda-feira, 27 de novembro de 2006
Desencontro
Foi desmanchando-a de leve:
Primeiro, segurando bem nas clavículas
Deu um peteleco em cada vértebra
Até que se soltaram como contas de um colar
E se esparramaram pela fria tábua corrida
Do cômodo encharcado de luar.
Logo, de repuxão apartou-lhe as costelas
Como ao abrir uma caixinha de esmeraldas,
E virou-a avêsso feito uma fronha bordada.
E enxergou, finalmente, sob a luz fria
Da noite o seu palpitante coração.
Só então ela falou, com uma ponta de mágoa:
-- Agora me conheces?
Primeiro, segurando bem nas clavículas
Deu um peteleco em cada vértebra
Até que se soltaram como contas de um colar
E se esparramaram pela fria tábua corrida
Do cômodo encharcado de luar.
Logo, de repuxão apartou-lhe as costelas
Como ao abrir uma caixinha de esmeraldas,
E virou-a avêsso feito uma fronha bordada.
E enxergou, finalmente, sob a luz fria
Da noite o seu palpitante coração.
Só então ela falou, com uma ponta de mágoa:
-- Agora me conheces?
Sala de embarque
Esbarrando-se
Entre barricadas de Louis Vuitton
Os apressados
Desabafam seus pecadilhos
Engravatadinhos
Nos seu celulares-oráculo.
Porque nunca se sabe.
Entre barricadas de Louis Vuitton
Os apressados
Desabafam seus pecadilhos
Engravatadinhos
Nos seu celulares-oráculo.
Porque nunca se sabe.
domingo, 26 de novembro de 2006
Relicário
um terço de primeira comunhão
primeira e última comunhão
uma presilha viúva
íris de tule despedaçada
um Jesús lacônico, desbotado
segurando o próprio coração
onze medalhas de natação
ainda cheirando a cloro
uma bonequinha de porcelana
a boca pintada de carmim
protagonista aposentada de
grandes batalhas intergaláticas
de nenhuma cena doméstica
que eu eu me lembre
dois diários fracassados
confissões mentirosas
de quem escreve imaginando
quem as lê anos depois
retalhos de outrora
e no fundo do baú:
eu menina, doce-feroz
com presilhas de tule
medalhas no peito
cabeça cheirando a cloro
travando batalhas na areia
bem-mijada do parquinho
com bonecas de porcelana
generais de aventais
eu que hoje
mal me reconheço.
primeira e última comunhão
uma presilha viúva
íris de tule despedaçada
um Jesús lacônico, desbotado
segurando o próprio coração
onze medalhas de natação
ainda cheirando a cloro
uma bonequinha de porcelana
a boca pintada de carmim
protagonista aposentada de
grandes batalhas intergaláticas
de nenhuma cena doméstica
que eu eu me lembre
dois diários fracassados
confissões mentirosas
de quem escreve imaginando
quem as lê anos depois
retalhos de outrora
e no fundo do baú:
eu menina, doce-feroz
com presilhas de tule
medalhas no peito
cabeça cheirando a cloro
travando batalhas na areia
bem-mijada do parquinho
com bonecas de porcelana
generais de aventais
eu que hoje
mal me reconheço.
sábado, 25 de novembro de 2006
Poema-preguiça
Versinho sem
fôlego,
bêbado,
trôpego.
Sem rima nem
auto-estima.
Descaroçado
esvaziado
aperreado
sem nem muito
o que dizer.
Serve só
pra preencher
o vácuo
amedrontador
de uma folha
de papel.
Quintas e domingos
Quintas e domingos
Te enxergo com nitidez.
As pontas dos teus cílios,
O feitio das tuas mãos,
Tuas intenções.
Nos intervalos
Projeto a tua imagem
Nas paredes das minhas pálpebras.
Mas pequeninas dúvidas
Se acumuluam
E te embaçam.
A névoa apaga os teus cílios,
Borra as tuas mãos,
Desbota promessas.
Agüardo a próxima quinta,
Ou o próximo domingo,
Para colher mais detalhes.
Quem sabe um dia
Saberei desenhar o teu mapa
Com exatidão
De sábado a sábado.
Te enxergo com nitidez.
As pontas dos teus cílios,
O feitio das tuas mãos,
Tuas intenções.
Nos intervalos
Projeto a tua imagem
Nas paredes das minhas pálpebras.
Mas pequeninas dúvidas
Se acumuluam
E te embaçam.
A névoa apaga os teus cílios,
Borra as tuas mãos,
Desbota promessas.
Agüardo a próxima quinta,
Ou o próximo domingo,
Para colher mais detalhes.
Quem sabe um dia
Saberei desenhar o teu mapa
Com exatidão
De sábado a sábado.
sexta-feira, 24 de novembro de 2006
Encontro das águas
Água turva e
água límpida,
lado a lado
selva adentro.
Somos nós:
Negro e Solimões,
apostando corrida
até o mar.
Mas de repente,
Os botos pausam.
O biguá trina.
As correntes
se entrelaçam.
água límpida,
lado a lado
selva adentro.
Somos nós:
Negro e Solimões,
apostando corrida
até o mar.
Mas de repente,
Os botos pausam.
O biguá trina.
As correntes
se entrelaçam.
terça-feira, 21 de novembro de 2006
Metodologia
Procuro me apaixonar
sistematicamente.
Catalogando pistas.
Coletando evidências.
Contando os nossos passosd
de dez em dez
em dez.
Toda cautela é pouca.
É preciso elaborar hipóteses,
talhar teoremas,
polir contrafatuais.
Medir minuciosamente
o encaixe da minha mão
na sua mão.
Confesso, porém:
que certos dias
um vento zombeteiro
bate na minha boca
rodopia pela minha garganta
esparrama os meus dados
descarrilha a minha
magra metodologia.
sistematicamente.
Catalogando pistas.
Coletando evidências.
Contando os nossos passosd
de dez em dez
em dez.
Toda cautela é pouca.
É preciso elaborar hipóteses,
talhar teoremas,
polir contrafatuais.
Medir minuciosamente
o encaixe da minha mão
na sua mão.
Confesso, porém:
que certos dias
um vento zombeteiro
bate na minha boca
rodopia pela minha garganta
esparrama os meus dados
descarrilha a minha
magra metodologia.
domingo, 19 de novembro de 2006
Como trocar as cordas de um violão
Com ternura: puxar a ponta
Da sobra da corda
Pelo orifício da cravelha.
Girar, girar, girar
Até que a corda ceda.
Então, com dedos calejados
Desamarrá-la do rastilho.
Chamá-lo assim:
Meu doce alaúde,
Minha violinha caipira.
Pensar no amado.
Com raiva: arrancar cada corda
De um só estirão.
Sentir o corte do náilon
Na palma da mão.
A corda estala,
As cravelhas saltam,
O rastilho estoura,
O braço se parte,
Madeira e verniz
Rasgando de dor.
Algo há de ceder: o violão
Ou você.
sábado, 18 de novembro de 2006
No show da Marisa Monte
Cem Marias
Plastificadas.
Botas de verniz.
Boquinhas de náilon.
Microssaias de poliéster.
Fitando o palco com
Grandes bolas-de-gude.
Reluzentes e vítreas.
Enfileiradinhas,
Endinheiradinhas,
Encaminhadíssimas.
Sequindo sempre o
conselho materno:
Jamais franzir a testa
Para evitar o envelhecimento precoce.
domingo, 12 de novembro de 2006
Dia e noite
I.
Esta praia se curva
feito uma grande cimitarra,
o fio da navalha fincado no mar.
À noite percorro a lâmina reluzente.
Sob todo mar revolto dorme
uma perfeita calmaria
talvez. Uma fina camada
abraçada ao chão do mar.
De dia, a cada mergulho
toco de leve a areia do fundo
para não esquecer.
II.
Acordo com o sussurrar
do papel-seda:
No escuro
você se dobra e desdobra
Menino-origami.
Gavião, espada,
pégaso, violão.
Estendo a mão
para tocar de leve
o teu coração irrequieto.
sábado, 11 de novembro de 2006
Coração de lava
Um coração de lava:
Aqui brotam farpas,
Disparam labaredas.
Fumegantes correntezas
Serpenteiam,
Lentas e letais,
Por minhas entranhas--
Borbulhantes,
Sulfurosas.
Mas nesta boca
Forrada de cinzas,
De dentes cerrados,
Trava a garganta:
Pedregulho-represa.
De entre meus lábios
Despencam frias
Cascatas
Lapidado.
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